sábado, 17 de julho de 2010

Há nuvens no olhar


Sempre que corriam nuvens desprotegidas pelo céu eu sabia da proximidade de mais uma tempestade. Não era necessário o bramido das aves, o baile das folhas no ar, nem sequer as variações da temperatura.
Quando, um dia, fui ao mar, ousando navegar como um marinheiro, desbravou-se um aglomerado de nuvens escuras, pelas velocidades dos ventos. Por essa altura, rodopiava no ar um pedaço de tecido cor de trigo. Não fosse eu realista e acreditaria ter provido da roupa de alguma sereia.
Mas, voltando às nuvens… ninguém pode duvidar da sua efemeridade. As nuvens são os fracassos da vida. Não passam de gotas de desilusão que, um dia, acabam por escorrer, morrendo. Todavia, têm sempre a opção de purificar, lavando.
Só quero realmente dizer que as nuvens que nos assombram os olhos são reversíveis. Nunca duram para sempre.


Sílvia Gonçalves

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Amor entre margens


Era uma vez uma margem de um rio. E era uma vez a outra margem.
Uma chamava-se “margem esquerda” e outra chamava-se “margem direita”.
Viviam os dias olhando uma para a outra. Até onde uma se estendia a outra também. Se o rio dobra-se quase poderíamos dizer que eram simétricas.
As aves que pousavam nas árvores de uma iam contar os segredos desta à outra, pousando também nos ramos das suas árvores.
Todos os seus dias se contemplavam mutuamente com uma inocência tão natural que quase nem se apercebiam dos sentimentos que as levavam a olharem-se sempre e sempre.
Havia dias em que entre ambas se erguia um nevoeiro intenso, ocultando os seus contornos. Mas continuavam a ser margens que bebiam do mesmo rio. Continuava a existir o sentimento de existência cumulativo a cada uma.
Todavia, o que realmente as separava era o rio. Esta entrave de água tão extensa como a capacidade de amar. Não fossem as aves animais solidários e elas desconheceriam os murmúrios uma da outra. Por muito que tentassem gritar, o som da terra não se propagava por entre as águas. E por muita vontade que os peixes tivessem em ajudar, estes nada podiam contra o poder do chão.
O Homem criou as pontes para se unir com outros homens, não para possibilitar a união das margens! Mas a Natureza não dorme e, assim, criou as aves.
De tanto se olharem directamente, as margens sabiam de cor os traços uma da outra, sabiam as feições do relevo, sabiam a altura dos montes e sabiam onde se acumulada a chuva depois de cair. E, nesta atmosfera, quase sem notar, apaixonaram-se. Tão intensamente como intensa era a água que as separava.
Na vida dos Homens também existe amores que se contemplam uma vida inteira mas estão separados por uma força equivalente à de um rio, nunca chegando a juntar-se.
Serão as pessoas margens e os acontecimentos extensões de água?

Sílvia Gonçalves

domingo, 11 de julho de 2010




Há um batimento que sinto
Quando o meu olhar te alcança.
Há também pequenos tremores
Que sozinhos se propagam.
Vivo num labirinto
Onde o meu coração se lança,
Descobrindo todos os sabores
Que me purificam e lavam.

Sílvia Gonçalves

Lixeira - Génese da vida


Desde o dia em que ao mundo viemos e abrimos as mãos para abraçar, há muito para sentir, muito para descobrir, há mais para além do que somos.
Vivemos e desgastamos, e é este o nosso sentido. Todos os pedacinhos de nós, de coisas que utilizámos vão parar a uma lixeira. Esta alberga todos os pedaços de nós. Não se faz esquisita, tudo aceitando e de toda a gente.
As lixeiras são o retrato mais fiel da origem da vida. Tudo o que nelas se encontra pode voltar a ser usado, pode voltar a viver. Também nós, por muito usados e esmoídos que estejamos, podemos abrir os olhos a um novo amanhecer, podemos construir um novo viver.
Esta é a forma mais extraordinária de nos regenerarmos: reconhecer as impurezas, descartá-las e seguir rumo a um novo sol, que nasce todos os dias da mesma forma, mas é contemplado variavelmente.



Sílvia Gonçalves

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Pontos pretos em céu azul



Houve um dia em que vi
Um céu azul com pontos escuros.
E quando a avenida subi
Eles permaneciam para além dos muros.

Muros que dividiam
As herdades da avenida.
E os pontos escuros subiam
Fazendo sombras naquele dia.

Não eram do mesmo tamanho
Nem de igual simetria.
Embora pareça estranho,
Eles enevoavam o dia.

Eram mais que reis e rainhas
Que neste dia, me intrigam.
Afinal são andorinhas
Que nesta época migram.

Sílvia Gonçalves