sexta-feira, 5 de março de 2010

Ele era um pintor...



Ele acariciava a tela com o pincel embebido na tinta mais doce que tinha.
Espreitava, pelo lado do vaso posto na varanda, a sua paisagem. Era uma paisagem humana que se movia ao som do bater suave do coração.
O retrato deste jovem pintor era uma mão a alisar fios de cabelo castanho que percorriam um rosto inquieto.
Era a altura de mudar de cor. Embebeu o pincel mais fino de todos na tinta mais escura. Objectivo: demarcar a escuridão com simplicidade.
O retrato movia-se o que dificultava a tarefa do pintor. Mas cada gesto era retido na sua mente a fim de ganhar cor. Talvez outra.
Começou a chover repentinamente e o vaso agitou-se com o vento e a tarefa do pintor ficou ainda mais complexa. Mas enquanto o que pintava permanecesse naquela outra varanda, do prédio em frente, o exercício da arte era possível.
Porque não pintar as formas torcidas da varanda juntamente com as plantas que a envolvem? Passava tudo por uma questão de inspiração.
Não era a varanda, inerte e fácil por isso, que interessava ao pintor. Também não era a dona do cabelo que lhe chamava a atenção. Era apenas aquele cabelo castanho e aquela mão pálida que de tão delicada chegava a meter dó.
Ele queria pintar a realidade. Para quê imaginar uma rapariga loira de cabelo brilhante e mãos carnudas? Não era essa imagem que ele via.
Pintou até os dedos desprenderem o cabelo e a mão cair sobre o peito. O cabelo completamente livre misturou-se com os tons do pôr do sol que atravessavam a avenida e adquiriu a mais bela cor de sempre. Porém, já era tarde e a rapariga entrou no quarto deixando um rasto de cortinas a esvoaçar.
Mas o pintor reteve aquela cor indefinida de cabelo misturado com o pôr do sol na memória e, misturando todas as cores que tinha, terminou a sua tela.
Uma tela distinta das demais……….porque pintou a realidade.


Sílvia Gonçalves