quarta-feira, 20 de abril de 2011

Quando falta o "eu" surge o "outro"

Fecha a porta, se não queres ver ninguém. Nunca a abras o número de vezes correspondente aos lugares disponíveis que tens no coração. Receio que não sobre nenhum deles para mim. Receio que a luz que de ti emana não seja suficiente para ver os locais que piso. Receio ter de recorrer a uma candeia, que tem um brilho excepcional e subtil. Mas não é o teu.
Se, porventura, os nossos enredos não mais se cruzarem, não entristeças por isso. Deixa o fluir das horas arrastar os motivos e arrastar-nos a nós mesmos para uma vala comum, onde a nossa imortalidade se torne um doce acordar.
Os gestos sincrónicos que esboçamos distraidamente são pedaços de um tecido macio que nos envolve os corpos providos de energia. Não é a energia que vem do sol nem de qualquer outro estado da Natureza, é a que vem da nossa mente e se propaga pelos feixes dos sentimentos. Se escolhêssemos as intuições como fazemos com a roupa que vestimos todos os dias, a vida diluir-se-ia em fragatas de miséria e vazio.
Existe sempre alguém, em algum lugar, no mais oculto recanto, pronto a estender-nos a mão e a cuidar de nós como quem cuida de si mesmo. É a lei da solidariedade humana. Do olhar para o outro com a mesma ternura com que nos olhamos as espelho. Com mais ternura ainda. Não nos foi dada oportunidade de escolher o que somos, por isso, temos a capacidade de amar os outros, como forma de colmatar essa pequena lacuna da génese humana. Ao nos deixarmos cativar por alguém tudo em nós assume um formato duplo que converge para a unificação.
O amar erradica a consciência que nos pertence. Passamos a ser comandados, orientados, sofrendo alucinações terríveis que nos oferecem a mais pura melodia. Acabamos os dias a vislumbrar o luar como a criança que vê, pela primeira vez, uma bola de sabão a formar-se. E se a bola é levada com o vento para longe? E se cai no chão? E se rebenta com o nosso respirar? Não há problema algum. Não seria a única bola a passar pela vida da criança, embora pudesse ter sido a mais intensa, a mais amada, a mais verdadeira.
A nós humanos, que nada pudemos contra a força inexorável do sentir, cabe-nos fechar os olhos, de instante em instante, a fim de vermos melhor. A reflexão quase nunca traz algo de novo mas assimila os factos passados, propiciando um rumo mais certo para o futuro. Este, o futuro, de sonância fechada é na realidade um infinito oceano em aberto, apto a albergar os mais diversos navios, mesmo os que naufragarão com o tempo. Pois há sempre uma nova maré. Maré de luz, maré de esperança, maré de bocejos, maré de braços abertos, maré de sorrisos, maré de pregiça, maré de dedicação…




Sílvia Gonçalves