segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

O casaco verde

O casaco verde estava pendurado no fogão, na cozinha. Foi meu. Depois, usou-o a minha mãe porque me ficava ligeiramente comprido. Depois, começou a ficar-lhe apertado e comecei a usá-lo novamente. Eu, mãe, eu. Ela deu-me à luz, eu estou a ser efetivamente eu agora, um dia cuidarei dela. Papéis/empréstimos de um casaco que se trocam e entrecruzam. O dito casaco verde fez lembrar-me alguém que o to...cou diversas vezes, alguém cujo nome nem ouso referir, foi um alguém. Pronto, já passou. Mas o casaco, porém, permanece e insiste em lembrar-me desse alguém que o tocou e que, consequentemente fez parte do seu tecido verde. Na verdade, ele não é apenas verde: possui também riscas azuis, laranjas, brancas e azuis novamente, e laranjas, e brancas…possui um padrão de riscas, pronto. Mas, na sua maioria, é efetivamente verde. A minha vida também era efetivamente de uma cor: vermelha. Sim, possuía algumas riscas também (as vidas nunca são nítidas, nunca possuem apenas uma única cor). Hoje talvez viva sobra um arco-íris, não possuo, de forma alguma, uma única cor. Talvez viva com mais incertezas, menos segurança, mais dúvidas de percurso mas também mais ousadácia (ousadia + audácia), esperanças e horizontes possíveis. Sinto que sou do mundo e não de alguém: sensação boa de se experimentar.

Sílvia Gonçalves

Pisar vidas

Nós podemos pisar vidas, literalmente. Não me refiro, portanto, ao pisar metafórico que alberga uma segunda e má intenção. Exemplificando, não me refiro ao pisar alguém com uma palavra arrogante ou com uma batota num jogo qualquer. Refiro-me a esta cena que observei: uma jovem caminhando na rua tem de escolher onde colocar os pés para não pisar um magote de pombas que, despreocupadas, não se desvi...avam do caminho. Ora, sendo as pombas dotadas de vida, a jovem teve a necessidade de desviar-se delas para não as pisar. Normalmente damos passos descontraídos sem olhar para o local exato onde a sola do sapato se irá apoiar. Neste caso em particular, surgiu a urgência de, meticulosamente, selecionar os espaços do solo a ser pisados. Doutro modo, aquela jovem pisaria vida.

Sílvia Gonçalves

Divisões

Os érons dividem-se em eras...as eras dividem-se em períodos...os períodos dividem o tempo...o tempo divide as pessoas...as pessoas dividem os sentimentos...os sentimentos dividem as emoções...as emoções dividem as lágrimas e as lágrimas dividem a saudade.

Sílvia Gonçalves
Pela porta semiaberta vislumbrei as faíscas do serralheiro, da sua profissão, da sua arte, da sua vida. As faíscas saídas da rebarbadora incidiam sobre ele, fundiam-se com ele do mesmo modo que um filho dá a mão ao pai. No fundo, aquele serralheiro é o pai daqueles feixes de lume que impressionam todos, menos a quem as produz. São já partes da sua vida, como os dedos o são das mãos. Porém, quem nã...o está habituado a tal oficio comtempla este fenómeno de faíscas incandescentes como algo com uma certa perigosidade, algo que está na margem, que pode ferir, que provém de uma máquina e as máquinas são perigosas. Traem os sentidos! O que produzem é exatamente o mesmo que ingeriram. Nós, pessoas, não somos assim: o que produzimos nunca é igual ao que deixamos entrar, fluir e cultivar-se em nós.Hoje, ao ver aquele serralheiro, vi o perigo e a naturalidade, a mera reprodução e a fiel representação, senti interpretações e preguiças de pensamento (a tal mera reprodução)…somos veias e artérias mas também ferros e arestas que se prolongam em nós; somos fios de cabelo e olhar baço e atento mas também passos adormecidos num calçado qualquer; somos o tudo e o nada mas continuamos sendo…

Sílvia Gonçalves

Retroceder

Por vezes saberia mesmo bem voltar a ter 6 anos...ter os "crescidos" a perguntar: De quem és filha? (e não perceber que essa curiosidade não era genuina, ocultava interesses que eu desconhecia)...ajudar o meu irmão a ir aos ninhos (sem ter ainda bem a noção de que tal perturbava aquilo que hoje sei ser "o ciclo da vida"...por falar em ciclo da vida, tenho saudades do "Hakuna matata", viver a vida ...sem preocupações e esquecer os problemas...problemas? O que seria isso?!...saudades ainda de passar horas a olhar para o nada e ver tanto mas tanto (felizmente isso ainda hoje preservo)...de brincar com a água, algo apenas transparente e cuja sensação é molhada, mas que na altura dava para brincar...de fazer das espigas de milho microfones que ecoavam as melodias que ouvia na televisão...televisão: os meus desenhos animados, os da minha geração, eram bons (nada destas lutas de robots de agora cujo nome nem sei especificar)...saudades de tanto que afinal vejo ser tão pouco relativamente ao futuro que ambiciono...mas seguramente será sempre o meu maior tesouro!

Sem esquecer os aviões de papel que, mesmo mal "fabricados", voavam sempre, nem que fosse através das asas da imaginação...


Sílvia Gonçalves