segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Vazio. Assim estava naquele dia. Por nenhum motivo.


Era um poço de jardim que, embora se propusesse ornamenta-lo, funcionava realmente. Porém, sem que nenhuma seca ocorresse nem que a terra desmoronasse, secou. Passou da condição vital à de termo. Para um poço que diferença faz? Não possui espirito, pensamento, coração nem consciência. Inevitavelmente nem sabe que existe. É estranho pensarmos desta forma: nas centenas de coisas que existem porque estão lá, as vemos, servimo-nos delas, servem múltiplos fins mas elas mesmas nem sabem que subsistem. Que injusta foi a Natureza ao permitir tal conjuntura. Este ser sem ser, existir porque sim.

E vivemos nós acompanhados de crises de identidade quando, na verdade, sabemos sempre que existimos. Podemos não saber bem quem somos nem por que motivo aqui estamos. Mas nós sabemos sempre que estamos. Dotados de uma consciência ousamos ofusca-la. Que seres perversos somos.

  Sílvia Gonçalves

sábado, 14 de julho de 2012

Tudo começou num tempo distante. Há muito muito tempo atrás (como normalmente se diz nas histórias). Uma jovem rapariga tropeçou num objeto. Melhor dizendo: em metade de um objeto. Metade de um coração. Inicialmente pareceu-lhe algo disforme, similar a uma face retratada em perfil, de um jeito abstrato. Só depois reparou ser metade de um coração. Daqueles corações “comerciais” que simbolizam o amor. Os corações reais são bem diferentes, cavados de artérias e veias que lhe conferem anatomicamente uma forma nada romantizada. Um pouco grotesca até. Ia ela descendo uma calçada com pedras de vários formatos e relevos quando, por fim, acabou por pegar na referida metade do coração. Questão que o mais comum dos mortais colocaria: Quem terá a outra metade? Com Maria (a jovem em destaque) não foi diferente. Quem teria a parte que encaixava no “seu” coração? Acrescento: Quem terá as metades que preenchem as nossas dúvidas, que acalentam os nossos receios, que embalam os nossos pesadelos? Quem as terá afinal?


Sílvia Gonçalves

segunda-feira, 2 de julho de 2012

As nuvens deslizavam


Como quem procura escapar

Às emoções que agarram

E suspendem o mar….


…que deixa de ser salgado

Para envergar a doçura

Desse teu corpo alado

Oposto à secura…


…do deserto quente

Onde a água é escassa.

Onde o nada é para sempre,

Onde a tua cor é baça…


…sem contornos definidos

Formas nítidas nem recortes.

Onde vês os sons escondidos

E ouves luzes fortes…


…através dos sentidos trocados

Que fazes por manter,

Entre melodias e fados

Ecoando pelo amanhecer…


…que precede a escuridão,

O frio e a saudade

Desse coração,

Batendo sem rumo ou vontade.


Sílvia Gonçalves



Contrastes

Lento, rápido, veloz.


Amargo, doce, mel.

Atravesso a tua voz

Através deste papel.

Luz, claro, escuro.

Sorriso, alegre, feliz.

O mundo não é duro,

Tu é que és um aprendiz.

Sussurro, canto, melodia.

Brisa, vento, tufão.

Nessa tempestade vazia

Eu sou o trovão.

Sono, sonho, dormir.

Olhar, ver, observar.

Ficar ou partir,

Ir ou voltar.

Gradientes que crescem,

Opostos que existem.

Termos que enlouquecem

Onde as palavras resistem.


Sílvia Gonçalves

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Deparo-me com a perfeita conceção do Homem que solta lágrimas quando se sente triste de modo a que quem o cerca entenda o que vivencia. Temos palavras cujas raízes se entrelaçam com as de outro alguém. Possuímos emoções que nos permitem conexões diárias com outras realidades, perspetivas alheias e diversos estados de espirito.


Somos bonecos com sentido, disfarçados de gente humana. Falta-nos a razão. Eu e tu só sabemos existir na esfera da emoção. Desprovidos de raciocínios, deduções lógicas ou ilógicas, pensamentos fundamentados…apenas sabemos sentir.

De fisionomia humana, olhar atento e apreendedor, não buscamos questões nem respostas mas estamos atentos ao amor. Não ambicionamos profissões nem cargos eruditos. O que gostamos mesmo é de seguir pirilampos que refletem a luz do que sentimos. E, quem sabe, num lugar qualquer nos espere a transformação que nos conduza ao adquirir da razão. Aí, os pirilampos serão simples animais, que com luzes incandescentes nos farão recordar os mil encargos que, na secretária, temos pendentes.

Sílvia Gonçalves

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Cascatas urbanas

Correm em movimentos constantes


As cascatas urbanas,


comummente “escadas rolantes”,


sim, é assim que lhes chamas.






De coração apenas mecânico:


Sem sentimento e cor.


Imagine-se pois o pânico


De não puderem sentir amor.






Correm em direções opostas:


Uma sobe, a outra desce.


Pisa-las e nem te importas,


Nem isso te entristece.






Mal sentem a luz do dia,


Enclausuradas na terra escura.


Deve ser grande a agonia,


Deve doer cada pisadura.




Porém, elas não param de transportar


Diferentes raças, idades e culturas.


E sem que tenhas tempo de pensar


Carregam também as tuas amarguras.


Sílvia Gonçalves

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Lido eficazmente
Com o nada
Que não é vazio, afinal.
No romper da aurora,
Da madrugada,
Angario reticências,
Descarto o ponto final.

Sou destra de natureza
Mas venturas já padeci,
Que me surgiram pela esquerda indefesa.
Foram breves e arrepiantes
(Esses instantes)
Que já sofri.


Sílvia Gonçalves

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

O casaco verde

O casaco verde estava pendurado no fogão, na cozinha. Foi meu. Depois, usou-o a minha mãe porque me ficava ligeiramente comprido. Depois, começou a ficar-lhe apertado e comecei a usá-lo novamente. Eu, mãe, eu. Ela deu-me à luz, eu estou a ser efetivamente eu agora, um dia cuidarei dela. Papéis/empréstimos de um casaco que se trocam e entrecruzam. O dito casaco verde fez lembrar-me alguém que o to...cou diversas vezes, alguém cujo nome nem ouso referir, foi um alguém. Pronto, já passou. Mas o casaco, porém, permanece e insiste em lembrar-me desse alguém que o tocou e que, consequentemente fez parte do seu tecido verde. Na verdade, ele não é apenas verde: possui também riscas azuis, laranjas, brancas e azuis novamente, e laranjas, e brancas…possui um padrão de riscas, pronto. Mas, na sua maioria, é efetivamente verde. A minha vida também era efetivamente de uma cor: vermelha. Sim, possuía algumas riscas também (as vidas nunca são nítidas, nunca possuem apenas uma única cor). Hoje talvez viva sobra um arco-íris, não possuo, de forma alguma, uma única cor. Talvez viva com mais incertezas, menos segurança, mais dúvidas de percurso mas também mais ousadácia (ousadia + audácia), esperanças e horizontes possíveis. Sinto que sou do mundo e não de alguém: sensação boa de se experimentar.

Sílvia Gonçalves

Pisar vidas

Nós podemos pisar vidas, literalmente. Não me refiro, portanto, ao pisar metafórico que alberga uma segunda e má intenção. Exemplificando, não me refiro ao pisar alguém com uma palavra arrogante ou com uma batota num jogo qualquer. Refiro-me a esta cena que observei: uma jovem caminhando na rua tem de escolher onde colocar os pés para não pisar um magote de pombas que, despreocupadas, não se desvi...avam do caminho. Ora, sendo as pombas dotadas de vida, a jovem teve a necessidade de desviar-se delas para não as pisar. Normalmente damos passos descontraídos sem olhar para o local exato onde a sola do sapato se irá apoiar. Neste caso em particular, surgiu a urgência de, meticulosamente, selecionar os espaços do solo a ser pisados. Doutro modo, aquela jovem pisaria vida.

Sílvia Gonçalves

Divisões

Os érons dividem-se em eras...as eras dividem-se em períodos...os períodos dividem o tempo...o tempo divide as pessoas...as pessoas dividem os sentimentos...os sentimentos dividem as emoções...as emoções dividem as lágrimas e as lágrimas dividem a saudade.

Sílvia Gonçalves
Pela porta semiaberta vislumbrei as faíscas do serralheiro, da sua profissão, da sua arte, da sua vida. As faíscas saídas da rebarbadora incidiam sobre ele, fundiam-se com ele do mesmo modo que um filho dá a mão ao pai. No fundo, aquele serralheiro é o pai daqueles feixes de lume que impressionam todos, menos a quem as produz. São já partes da sua vida, como os dedos o são das mãos. Porém, quem nã...o está habituado a tal oficio comtempla este fenómeno de faíscas incandescentes como algo com uma certa perigosidade, algo que está na margem, que pode ferir, que provém de uma máquina e as máquinas são perigosas. Traem os sentidos! O que produzem é exatamente o mesmo que ingeriram. Nós, pessoas, não somos assim: o que produzimos nunca é igual ao que deixamos entrar, fluir e cultivar-se em nós.Hoje, ao ver aquele serralheiro, vi o perigo e a naturalidade, a mera reprodução e a fiel representação, senti interpretações e preguiças de pensamento (a tal mera reprodução)…somos veias e artérias mas também ferros e arestas que se prolongam em nós; somos fios de cabelo e olhar baço e atento mas também passos adormecidos num calçado qualquer; somos o tudo e o nada mas continuamos sendo…

Sílvia Gonçalves

Retroceder

Por vezes saberia mesmo bem voltar a ter 6 anos...ter os "crescidos" a perguntar: De quem és filha? (e não perceber que essa curiosidade não era genuina, ocultava interesses que eu desconhecia)...ajudar o meu irmão a ir aos ninhos (sem ter ainda bem a noção de que tal perturbava aquilo que hoje sei ser "o ciclo da vida"...por falar em ciclo da vida, tenho saudades do "Hakuna matata", viver a vida ...sem preocupações e esquecer os problemas...problemas? O que seria isso?!...saudades ainda de passar horas a olhar para o nada e ver tanto mas tanto (felizmente isso ainda hoje preservo)...de brincar com a água, algo apenas transparente e cuja sensação é molhada, mas que na altura dava para brincar...de fazer das espigas de milho microfones que ecoavam as melodias que ouvia na televisão...televisão: os meus desenhos animados, os da minha geração, eram bons (nada destas lutas de robots de agora cujo nome nem sei especificar)...saudades de tanto que afinal vejo ser tão pouco relativamente ao futuro que ambiciono...mas seguramente será sempre o meu maior tesouro!

Sem esquecer os aviões de papel que, mesmo mal "fabricados", voavam sempre, nem que fosse através das asas da imaginação...


Sílvia Gonçalves