sexta-feira, 26 de março de 2010

Um mistério qualquer



Tão depressa se deseja
Como de repente se abandona.
O que se serve na bandeja
É uma inquietude medonha.

Dizem que é amor,
Dizem que é paixão.
Há quem lhe saiba o sabor.
Há quem viva na escuridão.

Mais que um turbilhão de ideias
E um misto de sensações,
Na barriga sentimos sereias
E no peito tubarões.

Recorrendo amargamente
À doçura deste enleio,
Não sou forte nem valente,
Nem sequer tenho receio.

Sílvia Gonçalves

Meninos de ninguém




Meninos de fome,
Que vestem maus tratos,
Com corações sem nome.
De dor e guerra fartos.

Não é feliz vossa vida.
Não é suficiente a união.
Estais em constante partida,
Sem ter quem vos pegue na mão.

Sois meninos sem amor,
Desprovidos de amizade.
Sois frutos sem sabor.

Nos olhos nada vos brilha.
Andais cá sem andar.
Vítimas desta armadilha.

Sílvia Gonçalves

Comboio da minha vida


Neste comboio da vida
Onde, por vezes, fico abarcada
Tentando descobrir a saída
Ou, apenas, a carruagem adequada
Viajo incessantemente,
Numa procura imensa
De alegria que dure para sempre
E de luz perpétua e intensa.

Se embato sem querer
Foi o meu destino que prometeu
Numa circunstância eleger
Um comboio como o meu.
Desde que o choque não abale
Quem comigo possa trazer
O meu destino que fale
Justificando esse embater.

Sílvia Gonçalves

sexta-feira, 5 de março de 2010

Ele era um pintor...



Ele acariciava a tela com o pincel embebido na tinta mais doce que tinha.
Espreitava, pelo lado do vaso posto na varanda, a sua paisagem. Era uma paisagem humana que se movia ao som do bater suave do coração.
O retrato deste jovem pintor era uma mão a alisar fios de cabelo castanho que percorriam um rosto inquieto.
Era a altura de mudar de cor. Embebeu o pincel mais fino de todos na tinta mais escura. Objectivo: demarcar a escuridão com simplicidade.
O retrato movia-se o que dificultava a tarefa do pintor. Mas cada gesto era retido na sua mente a fim de ganhar cor. Talvez outra.
Começou a chover repentinamente e o vaso agitou-se com o vento e a tarefa do pintor ficou ainda mais complexa. Mas enquanto o que pintava permanecesse naquela outra varanda, do prédio em frente, o exercício da arte era possível.
Porque não pintar as formas torcidas da varanda juntamente com as plantas que a envolvem? Passava tudo por uma questão de inspiração.
Não era a varanda, inerte e fácil por isso, que interessava ao pintor. Também não era a dona do cabelo que lhe chamava a atenção. Era apenas aquele cabelo castanho e aquela mão pálida que de tão delicada chegava a meter dó.
Ele queria pintar a realidade. Para quê imaginar uma rapariga loira de cabelo brilhante e mãos carnudas? Não era essa imagem que ele via.
Pintou até os dedos desprenderem o cabelo e a mão cair sobre o peito. O cabelo completamente livre misturou-se com os tons do pôr do sol que atravessavam a avenida e adquiriu a mais bela cor de sempre. Porém, já era tarde e a rapariga entrou no quarto deixando um rasto de cortinas a esvoaçar.
Mas o pintor reteve aquela cor indefinida de cabelo misturado com o pôr do sol na memória e, misturando todas as cores que tinha, terminou a sua tela.
Uma tela distinta das demais……….porque pintou a realidade.


Sílvia Gonçalves