quinta-feira, 10 de junho de 2010

Formulando um poema





Formas contorcidas
Que lisas não sois
Quem vos deformou?
Ou quem vos formou assim?

Formas onduladas,
Formando ângulos rectos
Quem vos entortou?
Quem foi que vos formou?

Formas desengonçadas
Que para nada servis
Foi por força do vento
Que assim ficastes?

Formas formuladas
Que formulam a formulação
Formai também os Homens,
A moldar o coração!


Sílvia Gonçalves

Alvo errado





Com mil flechas,
Atingi o fruto que não devia,
Onde uma serpente se contorcia.

Agora há que fugir de repente
Não venha ela atrás de mim.
Sim, falo da serpente.

Se me morde
Pára-me o coração.
Disso percebiam Eva e Adão.

Esses desafiaram o perigo.
Também havia fruto pelo meio,
Era o tal proibido.

Mas eu só queria saciar a fome.
Que falta de precisão!
Eu não sou Eva de nome.

Já é quase de manhã.
A serpente perdeu-me de vista.
Posso, finalmente, saborear a maçã!
Sílvia Gonçalves
Frutos existem milhares. E serpentes também. O que conta é a intenção.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Prisão da alma

Os dedos mexem autonomamente
E a cabeça começa a fervilhar.
Nunca vivo calmamente
Porque estou sempre a pensar.

Ser fútil e vazia
Talvez menos me inquietasse.
Queria paz um só dia!
Algo que me libertasse.

Cada raciocínio feito
Um desejo a emergir.
Oh, o meu maior defeito
É esta necessidade de redigir.

Assim, vivo para as páginas
Que em branco se mostram,
Impondo apenas duas margens
Onde as minhas mãos encostam.

Sou prisioneira da literatura.
Não tenho o meu próprio viver.
Até esta amargura,
Estou a soltá-la a escrever.

Um papel e uma caneta
São o meu oxigénio
Como a prótese o é para o perneta.
E não…não sou nenhum génio!

Chega a ser doloroso
Não conseguir pensar em seco.
Que castigo maldoso
As letras serem o meu beco.

Fecho os olhos e pronto,
Lá vem a imaginação
Que faz ponto de encontro
Com a minha intuição.

Agora mesmo devia estudar
E pousar este maldito bloco.
Mas não paro de pensar
E a folha é o meu foco.

Já nada mais há a esperar.
Este é o meu viver.
E só quando parar de respirar
Deixarei de escrever!

Sílvia Gonçalves

Sinto a Natureza em mim

Há certas alturas
em que a Natureza me altera.
O meu temperamento oscila.
Como, por exempo, quando chove.
Pareço não ser quem era,
há algo em mim que morre.
Sinto grande melancolia.
Tudo fica cinzento
e os odores desse dia
são amargos,
trá-los o vento.
Sinto que a Terra
me corre no corpo.
Mudo o que sinto de lés a lés.
Anseio correr o mundo
mas nem sequer mexo os pés.
E quando a chuva, por fim, grita
só me apetece chorar.
Há mesmo dias tristes
em que não queria acordar.
Quando um trovão ecoa
bem alto, lá no céu
a minha alma anda à toa.
Se, porventura, o sol brilha
a minha pele radia,
os meus gestos ficam largos,
aproveito bem o dia
e os humores não andam alterados.
Sinto o enorme poder da Natureza em mim.
Penso que me daria bem na selva.
Seria livre e apenas escreveria
pondo de lado todas as burocracias, enfim.
Que feliz me sentiria!


Sílvia Gonçalves

terça-feira, 8 de junho de 2010

Poema espelhado





Já me incorporei na peça.
Vesti o meu papel.
Emparelhei contigo.
Decorei o cenário.
Tirei a roupa do armário.
Já interpreto o que digo.
Sou um retrato fiel.
Quero que alguém me despeça.

Prefiro viver o real.
Que também veste disfarces.
Que tem máscaras veladas.
Que procura aclamação.
Sou dona do meu guião.
Não conto as minhas passadas.
Dou abraços e não enlaces.
Sou personagem leal.

Sílvia Gonçalves

Preocupação





Que incerteza
Me inquieta a alma,
Prende-me o corpo.
Tira-me a calma.

Até hoje sempre consegui.
E daqui para a frente?
Que angustia me cerca.
Mas sempre assim vivi.

Dou voltas na cama,
Nem os sonhos são bons.
Acordo na dúvida
Que nem duvida se chama.

Sílvia Gonçalves

domingo, 6 de junho de 2010



Talvez seja franja de mar
Ou pétala solta ao vento
O que de ti me faz ritmar
Neste poema brando e lento.

Talvez sejam os sonhos vontades
Que se reprimam no inconsciente
Ou pedaços de herdades
Onde se colhe a semente

Talvez esses grãos germinem
Ao cair na terra lavrada
E os astrólogos examinem
Uma amena alvorada.

Talvez seja branco o papel
Ou manchado em tinta incolor
Sem ser necessário haver pincel
Se também não há corrector.

Talvez o que escreva seja vago, vão
E se difunda no infinito.
Mas rodopia-me no coração
De um modo que é regra, doçura e mito.

Sílvia Gonçalves

sábado, 5 de junho de 2010

Força externa



Há uma grua que me arrasta,
Quase me arrebenta por dentro
Para essa imagem gasta
De ferida aberta ao vento.

O fim é o meu limite
E o inicio o final.
Se a cronologia me permite
Ficarei sempre imortal.

Não sei o espaço
Que as algas ocupam no mar
Mas o meu já está gasto
Foi ocupado de amar.

Vou fechar as persianas.
Amanhã é um novo dia
Em que mais gruas virão
Até me levarem o coração.

Sílvia Gonçalves

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Versos desemparelhados



Reconhecer que uma lagoa
Certamente, pode verter
Não nos faz andar à toa
Pois é fácil de perceber.

Os amores não se comparam
E as luas mudam de fase.
As ilusões não amparam
Uma memória que Jaze.

São picos de rosas
Os dissabores que ocorrem
E por entre todas as prosas
Os pensamentos não morrem.

Tem formas o que hoje sinto
E não as conto a ninguém
Porque giram num labirinto
Do qual eu sou refém.

Folhas sacudidas pelo vento
São paisagem divinal
Que evocam todo o sentimento
Terreno ou celestial.

Sílvia Gonçalves