segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Vazio. Assim estava naquele dia. Por nenhum motivo.


Era um poço de jardim que, embora se propusesse ornamenta-lo, funcionava realmente. Porém, sem que nenhuma seca ocorresse nem que a terra desmoronasse, secou. Passou da condição vital à de termo. Para um poço que diferença faz? Não possui espirito, pensamento, coração nem consciência. Inevitavelmente nem sabe que existe. É estranho pensarmos desta forma: nas centenas de coisas que existem porque estão lá, as vemos, servimo-nos delas, servem múltiplos fins mas elas mesmas nem sabem que subsistem. Que injusta foi a Natureza ao permitir tal conjuntura. Este ser sem ser, existir porque sim.

E vivemos nós acompanhados de crises de identidade quando, na verdade, sabemos sempre que existimos. Podemos não saber bem quem somos nem por que motivo aqui estamos. Mas nós sabemos sempre que estamos. Dotados de uma consciência ousamos ofusca-la. Que seres perversos somos.

  Sílvia Gonçalves

sábado, 14 de julho de 2012

Tudo começou num tempo distante. Há muito muito tempo atrás (como normalmente se diz nas histórias). Uma jovem rapariga tropeçou num objeto. Melhor dizendo: em metade de um objeto. Metade de um coração. Inicialmente pareceu-lhe algo disforme, similar a uma face retratada em perfil, de um jeito abstrato. Só depois reparou ser metade de um coração. Daqueles corações “comerciais” que simbolizam o amor. Os corações reais são bem diferentes, cavados de artérias e veias que lhe conferem anatomicamente uma forma nada romantizada. Um pouco grotesca até. Ia ela descendo uma calçada com pedras de vários formatos e relevos quando, por fim, acabou por pegar na referida metade do coração. Questão que o mais comum dos mortais colocaria: Quem terá a outra metade? Com Maria (a jovem em destaque) não foi diferente. Quem teria a parte que encaixava no “seu” coração? Acrescento: Quem terá as metades que preenchem as nossas dúvidas, que acalentam os nossos receios, que embalam os nossos pesadelos? Quem as terá afinal?


Sílvia Gonçalves

segunda-feira, 2 de julho de 2012

As nuvens deslizavam


Como quem procura escapar

Às emoções que agarram

E suspendem o mar….


…que deixa de ser salgado

Para envergar a doçura

Desse teu corpo alado

Oposto à secura…


…do deserto quente

Onde a água é escassa.

Onde o nada é para sempre,

Onde a tua cor é baça…


…sem contornos definidos

Formas nítidas nem recortes.

Onde vês os sons escondidos

E ouves luzes fortes…


…através dos sentidos trocados

Que fazes por manter,

Entre melodias e fados

Ecoando pelo amanhecer…


…que precede a escuridão,

O frio e a saudade

Desse coração,

Batendo sem rumo ou vontade.


Sílvia Gonçalves



Contrastes

Lento, rápido, veloz.


Amargo, doce, mel.

Atravesso a tua voz

Através deste papel.

Luz, claro, escuro.

Sorriso, alegre, feliz.

O mundo não é duro,

Tu é que és um aprendiz.

Sussurro, canto, melodia.

Brisa, vento, tufão.

Nessa tempestade vazia

Eu sou o trovão.

Sono, sonho, dormir.

Olhar, ver, observar.

Ficar ou partir,

Ir ou voltar.

Gradientes que crescem,

Opostos que existem.

Termos que enlouquecem

Onde as palavras resistem.


Sílvia Gonçalves

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Deparo-me com a perfeita conceção do Homem que solta lágrimas quando se sente triste de modo a que quem o cerca entenda o que vivencia. Temos palavras cujas raízes se entrelaçam com as de outro alguém. Possuímos emoções que nos permitem conexões diárias com outras realidades, perspetivas alheias e diversos estados de espirito.


Somos bonecos com sentido, disfarçados de gente humana. Falta-nos a razão. Eu e tu só sabemos existir na esfera da emoção. Desprovidos de raciocínios, deduções lógicas ou ilógicas, pensamentos fundamentados…apenas sabemos sentir.

De fisionomia humana, olhar atento e apreendedor, não buscamos questões nem respostas mas estamos atentos ao amor. Não ambicionamos profissões nem cargos eruditos. O que gostamos mesmo é de seguir pirilampos que refletem a luz do que sentimos. E, quem sabe, num lugar qualquer nos espere a transformação que nos conduza ao adquirir da razão. Aí, os pirilampos serão simples animais, que com luzes incandescentes nos farão recordar os mil encargos que, na secretária, temos pendentes.

Sílvia Gonçalves

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Cascatas urbanas

Correm em movimentos constantes


As cascatas urbanas,


comummente “escadas rolantes”,


sim, é assim que lhes chamas.






De coração apenas mecânico:


Sem sentimento e cor.


Imagine-se pois o pânico


De não puderem sentir amor.






Correm em direções opostas:


Uma sobe, a outra desce.


Pisa-las e nem te importas,


Nem isso te entristece.






Mal sentem a luz do dia,


Enclausuradas na terra escura.


Deve ser grande a agonia,


Deve doer cada pisadura.




Porém, elas não param de transportar


Diferentes raças, idades e culturas.


E sem que tenhas tempo de pensar


Carregam também as tuas amarguras.


Sílvia Gonçalves

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Lido eficazmente
Com o nada
Que não é vazio, afinal.
No romper da aurora,
Da madrugada,
Angario reticências,
Descarto o ponto final.

Sou destra de natureza
Mas venturas já padeci,
Que me surgiram pela esquerda indefesa.
Foram breves e arrepiantes
(Esses instantes)
Que já sofri.


Sílvia Gonçalves

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

O casaco verde

O casaco verde estava pendurado no fogão, na cozinha. Foi meu. Depois, usou-o a minha mãe porque me ficava ligeiramente comprido. Depois, começou a ficar-lhe apertado e comecei a usá-lo novamente. Eu, mãe, eu. Ela deu-me à luz, eu estou a ser efetivamente eu agora, um dia cuidarei dela. Papéis/empréstimos de um casaco que se trocam e entrecruzam. O dito casaco verde fez lembrar-me alguém que o to...cou diversas vezes, alguém cujo nome nem ouso referir, foi um alguém. Pronto, já passou. Mas o casaco, porém, permanece e insiste em lembrar-me desse alguém que o tocou e que, consequentemente fez parte do seu tecido verde. Na verdade, ele não é apenas verde: possui também riscas azuis, laranjas, brancas e azuis novamente, e laranjas, e brancas…possui um padrão de riscas, pronto. Mas, na sua maioria, é efetivamente verde. A minha vida também era efetivamente de uma cor: vermelha. Sim, possuía algumas riscas também (as vidas nunca são nítidas, nunca possuem apenas uma única cor). Hoje talvez viva sobra um arco-íris, não possuo, de forma alguma, uma única cor. Talvez viva com mais incertezas, menos segurança, mais dúvidas de percurso mas também mais ousadácia (ousadia + audácia), esperanças e horizontes possíveis. Sinto que sou do mundo e não de alguém: sensação boa de se experimentar.

Sílvia Gonçalves

Pisar vidas

Nós podemos pisar vidas, literalmente. Não me refiro, portanto, ao pisar metafórico que alberga uma segunda e má intenção. Exemplificando, não me refiro ao pisar alguém com uma palavra arrogante ou com uma batota num jogo qualquer. Refiro-me a esta cena que observei: uma jovem caminhando na rua tem de escolher onde colocar os pés para não pisar um magote de pombas que, despreocupadas, não se desvi...avam do caminho. Ora, sendo as pombas dotadas de vida, a jovem teve a necessidade de desviar-se delas para não as pisar. Normalmente damos passos descontraídos sem olhar para o local exato onde a sola do sapato se irá apoiar. Neste caso em particular, surgiu a urgência de, meticulosamente, selecionar os espaços do solo a ser pisados. Doutro modo, aquela jovem pisaria vida.

Sílvia Gonçalves

Divisões

Os érons dividem-se em eras...as eras dividem-se em períodos...os períodos dividem o tempo...o tempo divide as pessoas...as pessoas dividem os sentimentos...os sentimentos dividem as emoções...as emoções dividem as lágrimas e as lágrimas dividem a saudade.

Sílvia Gonçalves
Pela porta semiaberta vislumbrei as faíscas do serralheiro, da sua profissão, da sua arte, da sua vida. As faíscas saídas da rebarbadora incidiam sobre ele, fundiam-se com ele do mesmo modo que um filho dá a mão ao pai. No fundo, aquele serralheiro é o pai daqueles feixes de lume que impressionam todos, menos a quem as produz. São já partes da sua vida, como os dedos o são das mãos. Porém, quem nã...o está habituado a tal oficio comtempla este fenómeno de faíscas incandescentes como algo com uma certa perigosidade, algo que está na margem, que pode ferir, que provém de uma máquina e as máquinas são perigosas. Traem os sentidos! O que produzem é exatamente o mesmo que ingeriram. Nós, pessoas, não somos assim: o que produzimos nunca é igual ao que deixamos entrar, fluir e cultivar-se em nós.Hoje, ao ver aquele serralheiro, vi o perigo e a naturalidade, a mera reprodução e a fiel representação, senti interpretações e preguiças de pensamento (a tal mera reprodução)…somos veias e artérias mas também ferros e arestas que se prolongam em nós; somos fios de cabelo e olhar baço e atento mas também passos adormecidos num calçado qualquer; somos o tudo e o nada mas continuamos sendo…

Sílvia Gonçalves

Retroceder

Por vezes saberia mesmo bem voltar a ter 6 anos...ter os "crescidos" a perguntar: De quem és filha? (e não perceber que essa curiosidade não era genuina, ocultava interesses que eu desconhecia)...ajudar o meu irmão a ir aos ninhos (sem ter ainda bem a noção de que tal perturbava aquilo que hoje sei ser "o ciclo da vida"...por falar em ciclo da vida, tenho saudades do "Hakuna matata", viver a vida ...sem preocupações e esquecer os problemas...problemas? O que seria isso?!...saudades ainda de passar horas a olhar para o nada e ver tanto mas tanto (felizmente isso ainda hoje preservo)...de brincar com a água, algo apenas transparente e cuja sensação é molhada, mas que na altura dava para brincar...de fazer das espigas de milho microfones que ecoavam as melodias que ouvia na televisão...televisão: os meus desenhos animados, os da minha geração, eram bons (nada destas lutas de robots de agora cujo nome nem sei especificar)...saudades de tanto que afinal vejo ser tão pouco relativamente ao futuro que ambiciono...mas seguramente será sempre o meu maior tesouro!

Sem esquecer os aviões de papel que, mesmo mal "fabricados", voavam sempre, nem que fosse através das asas da imaginação...


Sílvia Gonçalves

sábado, 29 de outubro de 2011

Porque tudo não passou de um mistério. E o passado pode nunca ser revelado. Pode ser um mar de traições ou de ilusões. De vontades veladas e sonhos incertos. Riquezas apagadas e migalhas de esperança. Nunca chegamos a saber realmente o que os outros pensam face ao dilúvio de um olhar sincero. A incerteza faz parte, embora doa como quem anseia ouvir o tilintar dos talheres que precede o jantar: o conforto, e não pode.

Sílvia Gonçalves

domingo, 18 de setembro de 2011

Uma fragata ancorada na minha paciência.
Não me incomodo com nada,
Nem com a tua suprema ausência.

O chuveiro caído no chão
Ainda vertendo algumas gotas:
As lágrimas do coração.

Um esvoaçar de sentidos
Não mais aprisionados,
Jamais acometidos.

Sílvia Gonçalves

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Imortalidade distraída

Imortalidade distraída
Com a vida de ninguém
Por quem estás atraída?
Quem te mantém refém?

A tua função é importante.
Desperta novamente!
Faz o teu trabalho dilacerante:
O de manter vivo toda a gente.

Não fiques esquecida, neste Inverno
De corações frios e magoados.
Faz com que o amor seja eterno!
Não interrompas os fados.

Cumpre o teu dever,
A missão que te assiste.
Não deixes ninguém morrer
Nem o mundo ficar triste.

Sílvia Gonçalves

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Noite atribulada



Os vidros ficaram partidos
Naquele chão desfeito.
Embriagaste os sentidos
Adormecendo no leito.

Quando a manha tímida surgiu
Acordaste para o mundo,
Apenas o odor sumiu
Nas ruas onde sucumbo.

Paira um frenesim agreste
Que esvoaça no ar.
Nem o meu nome soubeste
Naquela noite, ao luar.

Foi um adeus perpétuo e misterioso
Que nem rosas deixou.
A recordação do momento majestoso
Foi tudo o que restou.

Sílvia Gonçalves


Tamanhos do coração



Rebolando sobre malmequeres
Tento congelar o tempo,
Esquecer-me do que queres,
Soltar a alma ao vento.

Escutando a água do ribeiro
Tento parar a Terra (em vão)
Que gira o dia inteiro
Num movimento de translação.

Só quando os pássaros calam
E o relvado fica sereno
Os pensamentos me abalam
E o coração fica pequeno.

Prefiro flores a betão
E frutos verdes a maduros.
Quando volta a crescer o coração
Aí sim, estou em apuros.

Sílvia Gonçalves

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Em todo este mundo
Encontro locais suspensos
Aos quais não pertenço.
Mesmo assim tu insistias,
Quebrando as minhas poesias.
Propago um suspiro profundo
Ao avistar rostos tensos
Quando perco, quando venço.
Todos os teus enormes estragos
Enredam os meus versos velados.
Quando falo, quando penso…

Sílvia Gonçalves

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Quando as estrelas começam a brilhar, a noite abre os olhos e observa o mundo com mais facilidade. Vislumbra os vales e as montanhas, restaurando a paz a cada lugar. Observa os rios e o Oceano, as praias e os prados, distribuindo calma a cada recanto.
Acontece, por vezes, cometer pequenos erros como dar as boas-vindas ao Verão antes de ter tido lugar a Primavera. Porém, quando lacunas dessas sucedem, o dia auxilia-a. Este último, apesar de não possuir estrelas que o iluminem, vê ainda melhor tudo o que acontece comparativamente à noite. Possui o sol.
A Natureza foi meticulosamente pensada e carinhosamente concebida.
Quando os camponeses tocam guitarra em torno das fogueiras é a noite que os escuta. Mas quando os pássaros chilreiam pela manhã é o dia que os ouve. Nisto vejo igualdade e justiça.
A lua está rodeada por estrelas e o sol por nuvens. A isto chamo companheirismo.
A noite sente o cheiro da terra adormecida e o dia sente o odor da terra erguer-se do seu sono profundo, o que revela o desfrutar os prazeres da vida.
Tanto num cenário nocturno como num diurno paira a vida que acontece, a magia da sucessão das horas…
Em cada noite nasce, pelo menos, uma vida. Em cada manhã há quem acorde com alguém do lado. Precisamos uns dos outros.
No mesmo minuto em que gira a roda de uma cadeira de rodas gira a roda de um moinho. E, no mesmo momento em que alguém deixa cair uma lágrima, há uma folha de árvore que transpira uma gota de orvalho. Trata-se de instantes coincidentes e ignorantes.
O nevoeiro que povoa as serras pretende ocultar a beleza das mesmas, esquecendo-se que, quando os raios de sol incidem sobre ele a sua luz, o cenário se torna ainda mais belo. É invejoso e avarento o nevoeiro ao querer guardar só para si cenário tão deslumbrante. Quando temos algo ou alguém valioso na nossa vida não devemos ocultá-lo. Devemos antes partilhá-lo com o mundo porque não somos donos de nada, mas apenas espectadores e meros acompanhantes. Tentar prender e/ou esconder um ser livre é dos maiores crimes que se podem cometer.
Por vezes, tento esquecer-me das coisas. Esquecer-me de mim mesma, até. Só para poder olhar tudo o que me rodeia de modo inocente, com genuína destreza. Com mais simplicidade.
Sempre que recuo o meu andar pretendo bloquear os sentidos e registar apenas um determinado momento temporal que, por algum motivo, mereceu a minha melhor atenção. Às vezes permaneço imóvel, outras

deambulo nem que seja com o pensamento.

Sílvia Gonçalves

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Pesca Dor


Não vás ao rio só hoje, temível pescador. Não queimes mais a cicatriz do rosto com este sol escaldante. Fica, vive, admira, contempla, aproveita, renasce! Nem só de trabalho vive o homem…
Cria laços para além do mar. Não fiques a imaginar sereias quando podes ter mulheres de verdade. Arruma as redes e deixa os peixes no Oceano. Veste a tua melhor camisa e vai jantar fora. Conhece pessoas, ri, bebe, dança. É tão bom dançar! Aposto que até hoje nunca dançaste (balançar no barco com a agitação da maré não conta).
Faz-te à vida antes que ela se faça a ti e te trame. Cria o teu fado e conhece as pessoas certas para ti. Convém que seja gente humilde e sincera, dedicada e afável.
Um dia podes até construir uma casa, quem sabe. Não é necessário queimares a tua velha cabana, podes voltar lá de vez em quando, para sentires o que realmente é o conforto e o quanto estavas a perder.

Olha pescador, esquece tudo o que disse. Perdoa ter-me intrometido na vida que é tua, apenas tua. Sê feliz ao teu jeito, mesmo que isso implique apenas o mar, redes e um barco. Cada um sabe de si…


Moral da história: por vezes queremos tanto bem aos outros que nos esquecemos de ver que o nosso bem pode não ser o bem deles. Podemos não seguir os demais, nem concordar com as suas trajectórias mas temos de os respeitar!

Sílvia Gonçalves

Bailarina


Linda bailarina, dança.
Rodopia no palco que é teu.
Faz girar essa trança
Saltitando até ao céu.
A flauta já está a entoar
As mais doces melodias,
Que te farão dançar
Todos os dias.
Segue em frente
E dá passos de princesa,
Com o este sol poente
Que ilumina a tua destreza.
Cria uns ritmos só teus
Não permitas o intrometimento
De olhos alheios aos teus
Que te causem sofrimento.

Sílvia Gonçalves

Teatro !?


Suspanse.
As cortinas abrem.
A agitação da plateia faz vibrar os candelabros.
Com os diabos!
A actriz está morta,
O cenário desfeito
E o pobre ensaiador com uma flecha cravada no peito.
Tenham respeito!
Todas as vozes gritam,
Apenas uma suspira. Será a culpada?
A que manobrou a espada e o arco de flechas.
Não sejam lamechas!
Isto é apenas teatro, farsa, enganação.
Gemidos, lamurias e pregações.
É apenas o talento da imaginação
Acompanhado de cenas, actos e canções.

Sílvia Gonçalves


Cavalgando incertezas
Sob montanhas de ilusão
Lanço-me nas profundezas
Da lava ardente de um vulcão.
Eu sei bem que quero ir.
Tenho essa convicção.
Cavalgar sem partir
Mas partir-te o coração.
Há loucuras que afastam
E fazem tremer o mar,
Provocam ondas que desgastam
O doce verbo amar.

Sílvia Gonçalves

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Pensar custa



Um silêncio moroso. Uma mão estendida. Um grão de areia dentro do sapato que incomoda, magoa, chega a irritar. Proveio da erosão do teu pensamento, porque era Verão. No Inverno, encontras flocos de neve nas mangas do casaco, que derretem e não dás pela sua presença. Resultam do descongelamento da tua ilusão.
Conclusão: imaginar não custa; pensar desgasta, consome, chega a corromper…incomoda.


Sílvia Gonçalves

quinta-feira, 21 de abril de 2011

(Não)Aguento mais

Deambulo naquela ponte de madeira com buracos do tempo e ventos do infinito que quase me fazem cair. Mas aguento um pouco mais.
Salto para a relva molhada do orvalho e escorregadia do pólen mas mantenho-me firme ao chão. Aguento um pouco mais.
Vou pela rua que chove com um chapéu que voa mas a chuva não me molha. Eu aguento mais.
Corro num prado deserto a fugir de lobos que me cercam mas não me prendem. Aguento ainda mais.
Atravesso uma auto-estrada sem olhar mas os carros não me atingem. Aguento mais e mais.
Dou passos cautelosos, medindo as esquinas estreitas e o ar envolvente e cai sobre mim uma árvore. Não aguento mais.

Sílvia Gonçalves

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Quando falta o "eu" surge o "outro"

Fecha a porta, se não queres ver ninguém. Nunca a abras o número de vezes correspondente aos lugares disponíveis que tens no coração. Receio que não sobre nenhum deles para mim. Receio que a luz que de ti emana não seja suficiente para ver os locais que piso. Receio ter de recorrer a uma candeia, que tem um brilho excepcional e subtil. Mas não é o teu.
Se, porventura, os nossos enredos não mais se cruzarem, não entristeças por isso. Deixa o fluir das horas arrastar os motivos e arrastar-nos a nós mesmos para uma vala comum, onde a nossa imortalidade se torne um doce acordar.
Os gestos sincrónicos que esboçamos distraidamente são pedaços de um tecido macio que nos envolve os corpos providos de energia. Não é a energia que vem do sol nem de qualquer outro estado da Natureza, é a que vem da nossa mente e se propaga pelos feixes dos sentimentos. Se escolhêssemos as intuições como fazemos com a roupa que vestimos todos os dias, a vida diluir-se-ia em fragatas de miséria e vazio.
Existe sempre alguém, em algum lugar, no mais oculto recanto, pronto a estender-nos a mão e a cuidar de nós como quem cuida de si mesmo. É a lei da solidariedade humana. Do olhar para o outro com a mesma ternura com que nos olhamos as espelho. Com mais ternura ainda. Não nos foi dada oportunidade de escolher o que somos, por isso, temos a capacidade de amar os outros, como forma de colmatar essa pequena lacuna da génese humana. Ao nos deixarmos cativar por alguém tudo em nós assume um formato duplo que converge para a unificação.
O amar erradica a consciência que nos pertence. Passamos a ser comandados, orientados, sofrendo alucinações terríveis que nos oferecem a mais pura melodia. Acabamos os dias a vislumbrar o luar como a criança que vê, pela primeira vez, uma bola de sabão a formar-se. E se a bola é levada com o vento para longe? E se cai no chão? E se rebenta com o nosso respirar? Não há problema algum. Não seria a única bola a passar pela vida da criança, embora pudesse ter sido a mais intensa, a mais amada, a mais verdadeira.
A nós humanos, que nada pudemos contra a força inexorável do sentir, cabe-nos fechar os olhos, de instante em instante, a fim de vermos melhor. A reflexão quase nunca traz algo de novo mas assimila os factos passados, propiciando um rumo mais certo para o futuro. Este, o futuro, de sonância fechada é na realidade um infinito oceano em aberto, apto a albergar os mais diversos navios, mesmo os que naufragarão com o tempo. Pois há sempre uma nova maré. Maré de luz, maré de esperança, maré de bocejos, maré de braços abertos, maré de sorrisos, maré de pregiça, maré de dedicação…




Sílvia Gonçalves

sábado, 5 de fevereiro de 2011


Andam a deambular na alameda
Pedaços de tecido, pedaços de seda.
Eram de corpos nus que se mataram
Na penumbra da manhã
E que, despidos, lá ficaram
Onde já só resta a cor roxa e vã.
Foram amantes, feiticeiros.
Nunca real sorte o saberá.
E fragmentados ou inteiros
A sua alma sucumbirá.
Jazerão apodrecidos
Os corpos nunca intrometidos.
Abandonados na natureza ingrata,
Que mais lhes roubou que prometeu,
Escorregaram na cascata
Feita do suor que é meu.


Sílvia Gonçalves

Alianças tiradas

É sabido que as coisas nascem e morrem. Realmente elas nascem. E, de facto, também morrem.
Quando as alianças são retiradas, ainda subsiste por muito tempo a sua sensação, o seu peso, a sua forma e o seu poder, a sua carga simbólica e afectiva. Há ainda a considerar a marca literal que fica na pele. Uma pequena tira fina mais clara que a restante. Assemelha-se à pequena parte que a pessoa a ela correspondente ainda ocupa no coração. Mas, com a força inexorável do tempo, essa marca acaba por esbater-se, não se distinguindo mais os tons na pele sofrida.
À medida que essa marca se oculta, oculta-se também a imagem da pessoa que se amou. Cada vez é necessário um esforço maior para se conseguir recordá-la. Os seus traços não são visíveis como sendo bem definidos. Já para não falar do seu odor. Este apaga-se por completo e só é evocado quando um muito parecido paira no nosso ar.
As coisas evoluem e as mais velhas da vida, as que ficaram bem lá atrás, acabam por morrer.


Sílvia Gonçalves
Não me incomodam as planícies cobertas com o teu pó, nem a água que transpiras. Pouco me importa se cais e não te levantas. Se te feres e sofres.
Minto. Importa-me bastante, embora seja errado. Embora o tempo se tenha esquecido de nós. Penso em ti. Preferia não o fazer. Seria um alívio se me libertasses dos teus braços de fingir, se me deixasses romper livremente o caminho, se te esquecesses de mim sem esquecer totalmente. Eu queria apagar-te de uma só vez, de rajada, sem olhar para trás. Sem que restassem indícios cultivadores de um novo amor. Queria quebrar todas as raízes num ápice. Dói quando os sentimentos adoecem sem morrer, ficando pequenas pontas soltas. Pequenas de mais para voltar a serem semeadas e grandes de mais para serem esquecidas.

Sílvia Gonçalves

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Se

Se aceitares falar comigo prometo que vou medir as palavras. Que só ousarei dirigi-las com carinho e ternura. Que não vão magoar nem deixar dúvidas. Porque, no fundo, o que quero, o que sempre quis, foi o teu bem, a tua felicidade. Se, por vezes, não parece é porque me embrulho nas sílabas e tropeço nos sentimentos.
Nem precisas falar comigo, afinal. Basta estares lá. Chega-me saber que estás presente, algures e que essa presença é real para além da imaginária que reside no meu coração, alterando os seus batimentos.
Só não aguento suportar a tua perda para alguém, por algum motivo, por determinado tempo. Não quero que sofras, por isso, também não permitas o meu sofrimento. Sei que para isso deverias saber que penso em ti, todos os dias. Mas a fachada é mais alta do que eu. E, assim, resigno-me a pequenos recortes teus quando talvez pudesse ter a tela. Mas são recortes talhados de amor e dedicação, não são meros flagras que te extraio de relance. Todo o teu ser está bem pensado dentro de mim. Tens formas e contornos bem estabelecidos pois levo os dias a delinear-te e passo as horas a cuidar de ti, secretamente. Se alguém perguntar digo que é mentira porque o amor não pode ser forçado. Não podes saber que o sinto se não o sentires também.


Sílvia Gonçalves

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Ondear da vida

Só o ondear das ondas
Pode justificar
O ir e vir
Sem nunca ficar.
Restam a areia, as algas, os rochedos
Que se associam ao sal
E afogando todos os medos
Fazem sentir-me um coral.
A água tocava-te o rosto
Quando me tentavas alcançar
E sem um barco posto
Começavas a remar.
Foram coisas que ficaram.
Eu sei lá se elas irão.
São sapatos que se descalçaram
E nunca mais pisaram o chão.

Sílvia Gonçalves

Tempo

Tempo vagabundo,
Que deambulas no escuro
Por favor, pára o mundo
E liberta o meu coração duro.

Recorre às mais frias cascatas.
Mas trava os minutos
Em que me resgatas
Desses braços tão brutos.

Teimas em ser inexorável.
Bem podias abrir uma excepção
Para que fosse memorável
O instante da minha libertação.

Sílvia Gonçalves

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Um sonho

Uma sensação mais que perfeita,
Sublime e quente.
Não foi inusitada. Não foi eleita.
Foi expiração de quem sente.

Houve tentativas de controlo,
De renegar a magia.
Mas com o avanço do rolo
Cada imagem progredia.

O flash disparou.
A respiração foi breve e espaçada.
Até a lua reparou
Nesta nossa emboscada.

O duro foi acordar,
Ver que a imagem se apagou
Em virtude de estar a sonhar.
E “tudo o vento levou”.

Sílvia Gonçalves



sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Tão suave.
Tão amargo.
És a chave
Da porta que trago…
Cativas e abandonas.
Temes por tanto temer.
E, assim, me pressionas
Mesmo sem saber.
É relutante este sentir
Que não pressupõe o erro.
Deixando apenas de insistir
Porque, instintivamente, tem medo.
Sílvia Gonçalves

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Os teus gestos,
A tua face,
O teu respirar,
Transformam-me as frases em versos.
Lançam-me num enlace
Do qual não me sei despegar.

Como apagar-te
Agora que te desenhei?
Como esquecer-te
Se ainda agora te recordei?

Quem atribui rosas ao amor
Deveria antes frisar
Que é pelos espinhos e pela dor
Que se costumam associar.

Sílvia Gonçalves

sábado, 13 de novembro de 2010

Forte ligação


Eram dois corpos encostados
Que sem querer, se despegaram,
Assumindo contornos desajeitados
E logo depois se abraçaram.

Não suportavam a ausência,
O calor afável e o odor
De toda aquela essência
Designada de amor.

No Outono, no Inverno, no frio
Até o tempo parar,
Viviam noites a fio
Harmonizando o respirar.

Chegavam a ser simbióticos.
Não tinham independência.
Eram de ambos os pórticos
Para alcançar a tal essência.

As palavras não eram precisas
Para a comunicação ganhar sentido
E quando suspiravam brisas
Um e do outro se faziam abrigo.

Mais que o toque e a inspiração,
Surge a cumplicidade
Que já vem da concepção
Tornando-se elo de reciprocidade.

Sílvia Gonçalves

domingo, 7 de novembro de 2010




Turbilhões de febres esquisitas
Rondam os ares da montanha,
Nos espaços em que coabitas
E escondes a tua rude façanha.

Não és feita de seda
Nem áspera como a arriba.
Transpareces entre a labareda
A tua nua cinta descaída.

O estrelar do céu
Fica coberto de pólen.
Tudo não passa de um véu
Lançado por um bravo homem.

Há defeitos. Há feitios.
Não nos podemos mudar.
Repelem-te com assobios
Mas terás o teu altar.

Sílvia Gonçalves

sábado, 6 de novembro de 2010

Possibilidades




É uma possibilidade,
A lua reduzir o tamanho.
Ficar uma mão de saudade
Pertencente a um braço estranho.

Esse braço pode ser
O ramo da árvore dos livros,
Que se lêem ao anoitecer
Até se adormecerem os sentidos.

Esse livro pode ficar
Para sempre fechado.
A criança irá chorar
Sem o seu enredo narrado.

Mas é possível que ela cresça
Se torne velha até.
E que para sempre adormeça
Bastando tomar café.

Sílvia Gonçalves

domingo, 10 de outubro de 2010

Ervas daninhas


Apareceste-me na avenida
Sem pedir licença à razão.
Fui vagabunda, página lida.
Fui pegada no chão.

Entraste sem pedir.
Se pedisses, deixaria.
Quase sempre a sorrir
Preencheste-me o dia.

Foi tudo farsa, porém.
Fui pecadora e refém.
E as tua mãos nas minhas,
Não passaram de ervas daninhas.

Sílvia Gonçalves

sexta-feira, 8 de outubro de 2010


Hoje vou pintar com a luz da lua
Um quadro que dure a eternidade.
Que explique a minha boca na tua
Sem pudor, com simplicidade.

Vou pegar na mais bela cor
Para te contornar os lábios,
Renunciando todo o amor
Escrito por Camões e outros sábios.

De mochila às costas vou fugir.
Não quero ver o regressar.
Anseio longe me despir
Da roupa que me está a apertar.

Quero abraçar culturas
E sentir os odores do mundo.
Contactar com torturas
Que nos consomem a fundo.

Eu quero ser, ir e permanecer.
Respirar e dormir.
Para um dia me perder
Sem nenhum mapa a distrair.

Sílvia Gonçalves

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Um local: uma vida, uma morte



Há muito muito tempo atrás, quando começaram a surgir as primeiras auto-estradas, uma família ficou sem lar. A via referida estava projectada para passar mesmo no local onde os primeiros tijolos ganharam forma, erguendo o corpo da casa dessa família. Solução? A mais simples, claro. Derrubar a dita casa, indemnizando os donos desta.
Nessa casa, outrora havia sido gerada uma criança, fruto do amor do casal que nela habitava. Estes, tristemente, deixaram o local onde deram vida aos seus primeiros sonhos, onde festejaram aniversários, natais, onde fizeram refeições intermináveis, onde descansaram ao som da aparelhagem localizada na sala de estar…
Com o dinheiro que receberam (merecido dinheiro) construíram novos sonhos, começando por um novo edifício.
Passado anos houve um acidente naquela auto-estrada. Resultado? Dois feridos graves e uma criança morta. Ironia do destino, se recuássemos até ao tempo da casa, viríamos que o local do despiste ficava precisamente sob o que antes havia sido um quarto, onde havia dormido um casal, onde havia sido idealizada uma criança, onde fora efectivamente consumada.
E como que se de uma moeda se tratasse, aquele local assumiu duas faces: uma de vida e uma de morte.
Sabemos lá o que é para sempre, o que nunca sairá do lugar…só uma coisa podemos tentar presumir: o amanhã será uma nova experiência. Não é relevante de que cariz seja, importa que seja e nada mais.

Sílvia Gonçalves

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Tu

Posso fazer-me esquecida
E abandonar-te num degrau qualquer.
Posso ser a névoa perdida,
Um monstro em corpo de mulher.

Posso compreender a tua vontade
E ver a sinceridade que transmite.
Mas desprezo essa qualidade,
Por muito que não a evite.

És alguém que odeio
Mas que gosto de ter.
O meu maior receio?
É um dia te perder.

Sílvia Gonçalves

domingo, 12 de setembro de 2010

Sensações




Era um dia expectante
Que contornava a razão
E sem cavaleiro andante
Percorri o coração.
Parando no tempo
Sem esboçar pontos finais,
Colei cada fragmento
Sem danos colaterais.
Brasas me aquecem
E cristais se agitam
Quando as nuvens escurecem
E as gaivotas gritam.
Pintando painéis de luz
Respiro o ar que emudece
E tão de repente seduz
O pobre que enlouquece.

Sílvia Gonçalves

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Se...

Se sou areia
És maré cheia.
Se sou luar
És o meu despertar.
Se és frescura
Eu nasci para ser tua.

Sílvia Gonçalves

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Lição de vida nº2


Era uma paisagem descoberta que em nada chamava a atenção. Não era daqueles panoramas que se colam à vista, ofuscando-nos os sentidos. Possuía um pequeno cavalo feito de trapos cuja base era de madeira.
Quem via tal local seguia em frente, sem fotografar, sem criticar, sem mudar a respiração.
Com a sucessão dos dias e das noites, o referido cavalo foi envelhecendo. Com o passar das Primaveras e dos Outonos, foi degenerando. Nessa altura, quem por lá passava já perdia um pouco do seu tempo a contemplar tal objecto. O que seria? Tinha tão mau aspecto. Para que servia ou teria servido? Já tiravam fotografias na possibilidade de, mais tarde, vir a perceber aquilo que outrora havia sido um cavalo de trapos.
Quando os acontecimentos correm pela normalidade nem os notámos. Passam ao lado. Se, porventura, algo os modifica, nem que seja o simples mas incómodo passar dos anos, já são alvo de cuidadas atenções. Até os nossos sentidos são interesseiros.

Sílvia Gonçalves

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Lição de vida nº1


Nem sempre as palmeiras se agitam com a força da brisa que corre. Por esse motivo e muitos mais, que não importam aqui deixar, ela partiu rumo ao deserto. Foi sozinha nessa jornada perigosa.
Caminhou dias a fio sobre areia delicada onde escreveu palavras efémeras.
De mochila às costas apeou-se por entre os cactos daquele solo arenoso na procura de algo mais vivo que ela, mais vivo que aqueles cactos transpirando verdura, mais vivo que o lagarto fugitivo que por lá passou.
Precisava de algo preso à vida que a fizesse sentir o sangue a correr nas veias e os poros a dilatar de pressão.
Não era aventura que ambicionava, não era diversão, não era loucura. Queria sentir a agitação suave da vida, o trémulo passar do tempo, os trilhos do destino.
Pouco lhe importava esbarrar contra um avião despenhado pois seguiria o seu caminho sem abrandar a marcha. De nada lhe serviria encontrar um poço repleto de água pois, se ele existisse, já estaria cercado de outras vidas. Nem só ela anda perdida pela vida.
Sentou-se para desenhar o sol a esconder-se nas dunas. Os seus dedos soavam tanto que deixou escorregar o lápis, o qual rebolou pelo chão por força da grande agitação do vento. Duas incongruências presenciadas: o sol tornar-se mais forte ao desaparecer e o vento soprar mais forte numa zona de baixa altitude. Era isto que ela queria - dificuldades. Pois só quem as vive é que vive realmente.
E ali, sem ser necessário encontrar algo mais vivo que ela, acabou por encontrar vida em si mesma. Por vezes, vamos tão longe procurar o que está guardado bem dentro de nós.

Sílvia Gonçalves

O que para mim são milagres

Acho milagre a pele se regenerar,

Acho milagre a lua preceder o sol,

Acho milagre um ser humano nascer de outro,

Acho milagre a água apagar o fogo,

Acho milagre uma árvore respirar,

Acho milagre a sucessão das luas,

Acho milagre bastar fechar os olhos para dormir,

Acho milagre ver sem olhar,

Acho milagre....VIVER!



Sílvia Gonçalves

terça-feira, 3 de agosto de 2010

A origem das coisas



Uma folha mostrou-se nua, possibilitando o visionar dos seus feixes de seiva. Era verde e possuía pintas escuras.
Uma mulher despiu-se, possibilitando o visionar das suas veias. Era escura e possuía olhos pretos.
Misturaram-se no mar. A mulher e a folha. A primeira nadava e a segunda boiava.
A água do mar é salgada porque a mulher soltou lágrimas nela e possui ondas porque a folha rodopiava nela também, originando pequenos tufões.
É tão fácil desvendar mistérios quando sentimos em nós o pólen da imaginação.
Sem dúvidas não haveria lugar para a fantasia. Por sua vez, sem esta não haveria espaço para os sonhos. Seria tudo exacto e recto. Não gostava de viver assim. Por isso, incertezas ainda bem que existem.

Sílvia Gonçalves

segunda-feira, 2 de agosto de 2010



Se para ti sou selvagem
E espinhos me cravam o coração,
Estás a viver uma miragem
Que não é futuro, é recordação.

Se o tempo para ti não avança
E preferes colar-te ao chão,
Forma um novo modo de esperança
Que te preencha o coração.

Esperas mesmo conhecer
A alma de tudo o que ficou.
O difícil é viver
Com o grito que ainda não soou.

Percorro em bicos de pés o mundo.
Eu sei onde quero ir.
Sei navegar no azul profundo
E sei como fazer-te sorrir.

Sílvia Gonçalves

Pisa - nuvens


Foi num aeroporto. As nuvens apresentavam-se estendidas pelo chão, estavam reflectidas.
As pessoas caminhavam normalmente. Ora levantando um pé, ora levantando o outro. Nem reparavam estar a pisar o céu. Foi aí que constatei que para além dos pisa papeis, existem pisa nuvens.


Sílvia Gonçalves